Como é mesmo aquela oração?

PRÓLOGO

Quinta-feira, 15h12 e essa era a quinta, ou seria a sexta discussão? Tanto faz. Havia se tornado tão comum as discussões dentro de casa que nunca dava para saber ao certo o número delas ao final do dia.

– O que aconteceu? – Pensou Tom. – Ela não era assim. O que será que se passa na cabeça dessa mulher? – A vontade era de falar alto, mas aí iriam para a sétima (?) discussão do dia. Melhor não. Estava cansado e a dor no peito ainda não havia passado totalmente, mesmo após os medicamentos.

– Que droga de hospital! Do que adianta ter convênio se você tem que esperar igual ou até mesmo mais do que os que não têm? – Balbuciou.

– Disse alguma coisa comigo? – Falou Rachel em um tom de ameaça, como quem está pronto para briga.

– Estou falando que não consigo entender o porquê de ter que pagar para ter convênio se quando eu preciso, acabo esperando mais do que os que não têm.

– Você é inacreditável, Tomas! Você só sabe reclamar. Quanto tempo esperou? Hein? 2, 3 horas? Sabe quanto tempo um trabalhador comum tem que esperar? Quanto tempo uma mãe precisa ficar com o seu filho na fila? Você deveria estar é agradecendo a Deus por ter um bom plano de saúde. – Soltou uma bufada de gente cansada. Foi tão forte que, se tivesse fogo nas ventas, Tom teria sido queimado vivo.

Não compensa discutir – Tom pensou, franzindo a sobrancelha em ar de cansaço. – Deve estar de TPM. Só pode. Hoje parece estar pior que outros dias. Antes eu tivesse ido para o trabalho. – Tossiu, entrou no quarto e se deitou na cama.

Adormeceu mais pelo cansaço do que realmente por estar sentindo sono. Melhor seria se não tivesse dormido, porque o susto que levou com a chegada dos meninos da escola fez com que o corpo todo doesse instantaneamente. A cabeça latejou como se tivesse tomado uma paulada com um taco de basebol.

Julia e David entraram gritando e pisando alto, como todo bom pré-adolescente que se prese quando chegam da escola. Chutaram a porta do quarto e jogaram a mochila na cama. Sequer perceberam que o pai estava em casa, afinal, eram ainda 17h45. O pai só chegava depois das 19h. Isso quando o trânsito ajudava.

Com o barulho, Tom acordou. Levantou-se pior do que havia deitado. Tossiu. Puxou um cigarro e começou a fumar para ver se a cabeça parava de doer. Não que fosse necessária alguma coisa para arrancar um cigarro do maço.

Tossiu novamente. – Droga de tosse! – A roupa ainda era a mesma da de manhã, quando decidiu que não dava mais para adiar e precisava ir ao médico. Trocou. Colocou um calção e uma camisa velha com os dizeres de um candidato a deputado. Camisa essa toda surrada. Também pudera, estava com ele desde 2006. O que importa? Iria ficar dentro de casa mesmo. Sem julgamentos. Todo mundo tem aquela roupa confortável que mais parece um traje de mendigo.

Nada de bebida hoje. O médico havia dito. Pelo menos desta vez estava disposto a obedecer. Vai que afeta a eficácia do remédio e ele tem que voltar amanhã pra fila do hospital. De jeito nenhum.

Quando desceu as escadas os meninos se assustaram.

– Pai? Aconteceu alguma coisa? – Perguntou Júlia.

– Tomei coragem e fui ao médico. – Disse Tom dando um sorriso de canto de boca, seguido de uma tosse.

– Finalmente. – Disse David. – Estamos estudando na escola sobre vírus e acho que o senhor está com a gripe H1N1.

– Vira essa boca pra lá! – Disse Júlia com um olhar de raiva para o irmão. – Você não sabe que essa coisa mata?

– Mata mesmo! Há vários casos registrados no nosso estado. – Disse David. – E você vai ficar agourando o Pai, idiota?

– Júlia, não chame seu irmão de idiota. – Disse Tom com uma voz branda, mas ao mesmo tempo firme. Voz de autoridade. Uma voz que claramente mostrava que as coisas não estavam bem, pois mais uma vez, veio seguida de uma tosse.

– Não estou agourando ninguém. Só estou falando o que ouvi na sala. – David falou meio pra dentro como se quisesse falar só pra si mesmo.

– Você é estranho, garoto.

– Estranho é você nariguda! Disse David com uma voz que começou grossa e terminou fina. Coisas da puberdade.

– Chega! – Disse Tom – Vão fazer o que tiverem de fazer da escola e parem de implicar um com o outro. Não estou com H1N1. O Doutor já descartou. Fiz exames. Ficaram de ligar. Vamos ver no que vai dar. – Sentou-se no sofá e ligou a TV.

Júlia e David saíram para os seus quartos, mas não antes de trocarem mais algumas farpas.

– Está pronto o jantar! – Disse Rachel com uma voz melancólica, dando uma última provada na sopa.

Tom estava na sala e chegou primeiro que os meninos. Estava com fome. Não havia almoçado e agora a barriga atacava.

– Sopa? Sopa, Rachel? É sério? Pelo amor de Deus! Eu não almocei, você sabe disso. Aí você vai e me faz sopa para jantar? Sopa não é janta! – A voz de Tom saiu firme, sem tossir. Nem parecia se tratar de um homem que havia passado o dia no hospital.

– Tom, por favor! Será que você pode comer sem reclamar só desta vez? O que é que tem comer sopa na janta uma vez na vida? – Rachel falou já com a voz embargada. Parecia querer chorar. – Eu passei o dia inteiro arrumando essa casa. Eu não estava à toa não, Tomas.

– Eu não disse que você estava à toa, meu bem. Só disse que passei o dia inteiro no hospital e queria comer uma comida mais “sustança”. Minha cabeça está me matando e eu sei que é por falta de comida de sal. Só queria um arroz com feijão.

Rachel agora realmente chorava enquanto mexia a colher de um lado para o outro na panela. Tom percebeu que não se tratava de sopa, arroz com feijão ou qualquer outra questão alimentícia. Tinha algo a mais escondido por trás daquelas lágrimas.

– Meu bem, me desculpe! – Tom disse terminando a frase com uma tosse. – Eu estou cansado e você sabe que quando estou assim acabo falando demais. Me perdoa?

Rachel não se aguentou e chorava agora copiosamente, ao ponto de se engasgar com as lágrimas. Tom a pegou pela mão e sentaram ambos no sofá.

– Meu amor, aconteceu alguma coisa? Eu sei que a gente anda discutindo e eu peço desculpas por ser tão bruto às vezes, mas é que… – Rachel o interrompeu.

– O médico, Tom. O médico ligou enquanto você dormia. – Rachel falou com a voz tomada por lágrimas e o rosto avermelhado de tanto chorar. Não era um choro normal. Havia dor ali.

– E o que ele disse? – Falou Tom com um olhar preocupado com a esposa e também com a resposta que parecia não ser nada boa.

– Eu… eu não consigo. Liga pra ele. – Rachel colocou a mão no peito com o punho cerrado, como quem aperta o coração. Ela chorava lágrimas de dor.

Tom viu que não conseguiria extrair nada da sua esposa que chorava amargamente. Pegou o celular e ligou para o médico. Cada barulho da chamada enquanto esperava ser atendido era um aperto no peito.

– Oi, alô, Dr. Michael, aqui é o Tom. Tomas Miller. Eu estive no seu consultório hoje e o senhor ficou de dar a resposta dos exames. Parece que entrou em contato com minha esposa hoje a tard… – foi interrompido.

– Sinto muito, sr. Miller, mas eu não trago boas notícias.

Todo mundo sabe que vai morrer. Mas aos 35 anos de idade? Meu Deus! Como é mesmo aquela oração?

Este post foi escrito por Allison Kayter Ribeiro em seu Trabalho de Conclusão do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Teologia e Literatura.

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